segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Veneno para orquídeas

Sinto-me escorregar por um penhasco bem liso. Não encontro aresta na qual possa me agarrar. Sinto a fome subir até minha boca e a sede se espalhar pelos dedos. Desprezo os ditos inimigos e odeio meu próprio amante. 

Seria estranho eu falar de eternidade para coisas que se desmancham com um sopro. Eu sinto de repente que sempre qualquer indelicadeza foi mais importante do que o meu ser inteiro. O inimigo reside no meu ventre e alimento com cada gota amarga depois das duas. Amamento esse gérmen podre que me intoxica aos poucos. Faço uma fogueira onde queimo todas as nossas vaidades. Sou um ranho verde que escorre pela parede lilás.

Quantas frases não ditas se acumularam na garganta que incha e faz a dor apertada subir pelos ouvidos e se espalhar por toda a cabeça. Só queria que uma vez na vida eu não fosse julgada assassina. Mas me condeno a guilhotina. E decapitada deixo minha cabeça rolar e saltitante se perder para sempre. Assim garanto distância segura entre ela e o resto.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dicas para fotografar a lua

Espere ela ficar bem cheia, não deixe que se canse muito. Leia um poema, cante uma canção, que pode até ser de amor se assim preferir. Estenda uma toalha branca com bordados em ondas. Deite sobre a grama, feche os olhos, respire fundo e perca a conta. Estenda os braços e dance no ritmo que desejar, preferencialmente faça isso sem pressa. Sorria para si mesmo, e faça o autorretrato mais belo de todos para que você mesmo possa olhar. Não tenha pressa de apresentar seus feitos ao mundo. Não deseje que outro veja e reconheça, faça porque é bom. Esqueça os próximos segundos e os segundos anteriores. Não imagine, sinta.

Aponte suas lentes para a face mais bela, e use seu tempo de exposição mais longo para que possa registrar tudo com calma. Por fim pegue o resultado e deposite na água corrente mais próxima, e assista o seu movimento até que suma por completo.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Mais uma gota

Minha última dose de rotina escorreu pelo ralo hoje junto com a água do banho da noite.

O que me segura são as pernas do destino. As mensagens silenciosas de homens sem corpo, não sei se peço para que digam em voz alta, ou se peço para que desapareçam de vez. Lembro do homem que me carregava no colo, quem ele é exatamente. Ainda está por aqui? A luz dura o tempo necessário para que possamos registrar a imagem. Os dias e as noites se dividem para preencher nossas horas. Somos fracos demais para suportar a rotina, somos válvulas pulsantes e altamente explosivas. Somos dois ou três intervalos e nada mais.

Esqueça dos últimos segundos, não revise os fatos. Essa semana é de agonia, abrace e deixe que berre.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um dia de quase sol

Uma resposta. E eu te digo, pense nisso. Esqueci de falar por horas, fiquei muda. Engoli milhares de farelos e quando por fim, vi que tinha um bolo inteiro só para mim. Glacê, camadas de chocolate, chiffon. Esfrego raspas de algodão na sua face ainda embriagada de fantasias adolescentes. Rasgo o vestido de debutante e guardo cuidadosamente em um saco preto. Esfrego as paredes com uma pequena espátula. Vou esquecendo nossos dias ruins lentamente. Vou esquecendo nossos desencontros diurnos e relembrando nossas serestas noturnas.

As palavras escorrem por finos fios dourados e vão se depositando livremente aqui e ali. Quem é aquela menina de saia que se esconde atrás do coreto? Espia entre as madeiras cujo branco descasca. De quem são aquelas tranças douradas que terminam em cachos? E as chiquinhas deviam ser presas cuidadosamente para evitar um desastre maior mais tarde. Seus grandes olhos espiam curiosos. Quem será a menina com mãos de fada e luvas de macramé.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Para quando a chuva chegar


A chuva escorre pela vidraça, escuto em silêncio suas gotas esparsas atingirem os telhados. Cubro os tornozelos com a coberta de lã, espero pela mudança de temperatura que se anuncia lentamente. O sol raiou por tempo suficiente para secar minhas roupas. Inclinei-me ao tanque por tempo bastante e quando o telefone tocou descobri que já era hora de almoçar. Um copo quebrado, alguns minutos de atraso. A chuva escorre e nós já esperávamos por ela.

Durante o dia deixei que ela tomasse sol, depositei-a cuidadosamente no peitoril da janela, ela sacolejou alegremente com o vento morno que vinha lá de fora. As cortinas brancas se agitaram e derrubaram alguns objetos sem importância. Seu banho de sol foi proveitoso, assim espero. Ela absorveu a luz necessária para enfrentar os próximos dias nublados, espero que seja o suficiente para suportar alguns dias dentro da gaveta. Pego então uma caixinha de madeira acolchoada, tecido colorido, bordado. 

Os dedos se espalham alegremente por aqui e por ali, compõem essas histórias contadas com borrões e intervalos. Criamos uma cantiga que diz verdades doces em tardes de verão. Hoje durante o dia sentimos o ar morno, acordamos com a carícia do sol do outro lado da persiana, e pensamos no tempo para o nosso feriado. Sempre que saímos de feiras compramos um pacote de jujubas, enchemos garrafas de água, e carregamos algumas maçãs e guardanapos. Viajamos olhando a paisagem, fechando os olhos e sentindo o balanço. Gostamos principalmente de sentir a brisa.

Roupas na mala florida, um lenço no pescoço, chapéu na cabeça. Vestimos botas de cano alto para proteger os tornozelos, ordem do professor. Quando chove uso capa de chuva, visto uma touca, e abro meu guarda-chuva da estação passada. Lembro do meu último guarda-chuva, tantas chuvas guardou. Presente de aniversário das minhas avó e bisavó. Era uma sombrinha dessas pequenas que podemos carregar na bolsa, e eu carreguei. Pegamos chuvas das mais variadas, até que ela adquiriu uma goteira e em uma ventania quebrou uma das astes. Com o passar do tempo tive de substituí-la, pois sombrinha de montar e com goteira dá trabalho. 

Gosto de bolinho de chuva, principalmente na casa dos amigos. Gosto de bolinho de chuva com chá de hortelã, gosto de bolinho de chuva com açúcar e canela. Gosto de bolinho de chuva com tinta e pincel, com papel e lápis, com filme e mate doce. Gosto de fazer maria-mole e ver os outros comendo, mas não gosto do barulho que ela faz para ficar pronta. Gosto de ver o coco ralado caindo feito chuva, mas chuva caindo feito coco ralado é neve. Visto botas de cano alto e capa de chuva. Visto touca para não molhar os cabelos no banho. Uso toalha para secar o rosto, e uso varal para secar a toalha.

A chuva escorre pela vidraça e eu penso que não preciso estar lá fora, que aqui dentro é quentinho e seco, que aqui dentro é quentinho e iluminado. Eu escuto a chuva, e sei que a noite se espalha lá fora. Eu escuto a chuva e escuto o barulho dela no asfalto. Eu escuto a chuva e lembro do telhado de zinco, escuto a chuva e lembro do temporal. Escuto as gotas esparsas caindo aqui e ali, escuto as gostas gordas fazerem taque quando batem. Eu sei do leite que fica quentinho quentinho, e com uma colher de mel, não preciso de remédios para dormir.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Enquanto vigio o teto

Daí sinto aquele prazer crescente de quem logo vai explodir em uma nova produção. Basta por hora tirarmos um pouquinho os pés do chão e olhando para o teto pensar nos segundos que ainda não passamos, ou dos quais mal podemos recordar. Mãos sobre o abdômem, uma respiração lenta e conto os minutos para a hora de sair. Penso se deveria comer algo, beber um pouco de água quem sabe. Juntamos as letras e formamos sequências sem sentido. Coleciono várias horas perdidas, gastas de forma desordenada e recolhidas em potinhos sem volta. Esqueço qual a sequência dos dias, esqueço qual o nome das portas. Entro sem que elas tenham sido trancadas e espio sempre que sou convidada. Construímos mundos inteiros em segundos velozes, um ano em dois minutos, uma vida em uma noite. Chorávamos abraçados em um tempo que não volta mais, o sofá continua com o mesmo buraco. Lembro que segurava sua mão com a mesma força com a qual pedia para que aqueles minutos se estendessem e para que aqueles meses voassem.

A vida escorre por entre os dedos, e quando acordamos já estamos enrugados dentro da banheira. Construímos cuidadosamente nosso barco de papel, esquecemos de desligar o chuveiro e a banheira transbordou. Agora escorremos a toda velocidade pela correnteza. Em breves instantes consigo tirar a cabeça da água e aspirar rapidamente. Volto ao mundo turbulento de barulhos sem sentido, debatendo-me rolo por uma superfície disforme. 

Braços ainda sobre o corpo, estico as pernas lentamente, vejo as estrelas emitirem a luz que guardaram ao longo do dia. A luz se apaga lentamente, e começam os sons da noite calma. Os raros automóveis passam cada um na velocidade que escolhe. Escuto a conversa dos dois rapazes que voltam para casa, as risadas da moça que ouve as novidades. Logo cedo a vizinha ouve suas músicas preferidas antes de vestir o salto, dar algumas voltas procurando as chaves do carro, conferindo os brincos, verificando o batom e trocando mais uma vez o casaco, para ir trabalhar.

Eu fecho os olhos e deixo que ele me observe de volta. Suspiro e deixo que suas gotinhas me olhem com ternura. Observamo-nos por horas, nos prolongamos nesse dialogo mudo. Sempre ele esteve a me cobrir, sempre ele a me vigiar. Durmo por horas, e quando acordo descubro que passaram-se minutos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Uma gotinha de solidão

Às vezes devemos ficar sozinhos, em alguns momentos, preciso me sentir completamente só. Às vezes preciso esquecer que alguém me aguarda, e que em alguns instantes estarei em outra parte. Por alguns instantes preciso esquecer quem sou. E às vezes custo a lembrar. Volto à antiga questão: quem sou eu? Essa massa que se move sem saber direito para onde, e recebe vibrações indefinidas de fontes longínquas ou extremamente próximas. Tem dias em que sento na pedra gasta no alto do morro e respiro as perguntas trazidas pelo vento. Tem dias em que me embriago de luz, e tem horas que minhas pupilas dilatam ao máximo, e ainda assim não consigo ver o que há a um passo de mim. Tem horas que sinto tanto frio, nem os cobertores mais pesados que encontro em casa conseguem me satisfazer. Tem dias em que as rachaduras em minhas mãos se alastram com incrível velocidade, só as descubro quando passo o creme e sinto arder, vejo aquele vermelho suave se espalhar pelas costas delas formando uma nuvem de pele mal tratada. Elas eram invisíveis e repentinamente aparecem, como se estivessem só esperando o aviso. 

Tem momentos em que sinto doer, mas não há creme que denuncie o caminho das rachaduras. Eu sinto as coisas que se aproximam, mas não posso enxergar. Nasci cega, e com o passar dos anos fui tentando aprender a ver. Nasci e a única coisa que eu conseguia fazer era berrar, mas chorava pouco. Com o passar do tempo fui desenvolvendo a técnica, fui aprendendo a chorar com mais força. E aprendi também a acordar com dor de cabeça, e os olhos inchados. Com o passar dos anos fui tentando aprender a ver, mas é difícil, às vezes, depois de tanto esforço a visão ainda fica turva. Às vezes eu queria ver com nitidez, às vezes gostaria de voltar a ser cega.

Há dias em que acordo com saudades, há momentos em que me afogo em saudades. Mas tem segundos em que me sinto totalmente livre. Nesses segundos abro minhas asas e vôo rapidamente pelo mundo todo, a velocidade é tanta que quando volto não consigo lembrar do que vi. Às vezes posso lembrar de alguns berros, mas não eram meus, e também não passaram a ser. Eu lembro também de alguns pedidos silenciosos, de algumas rezas sob o cobertor em noites frias. Lembro de algumas noites em claro com medo de algo invisível, de coisas indizíveis. Lembro de algumas dores, mas de algumas não consigo lembrar como sentia.

Tem dias que me lembro de como era sentir o vazio por todos os lados, como era ser inundada pelo nada, e de como isso podia ser bom, mas também lembro de como podia ser cansativo. E exatamente agora me canso de tanto lembrar, algumas vezes até desejei não ter memória, me deletar e começar de novo. Algumas vezes quis apagar certos rostos para poder olhar para eles sem sentimento algum, mas lembro que alguns deles já vêm com o aviso grudado na testa. Já teve dias em que eu quis esquecer, já teve dias em que eu quis partir, já quis ficar totalmente isolada do mundo, e já quis sentir cada partezinha dele. Já desejei ser adulto, já quis ser criança. Espiei a Terra do Nunca e concluí que é melhor continuar a crescer, mesmo com todas as suas implicações. Já voei sem precisar de pó mágico, mas apenas uma boa noite de sono. Já assisti filmes precisando apenas fechar os olhos.

Hoje tento acordar, pegar o remo e conduzir essa canoa por um caminho único. Mas os braços da noite ainda me prendem, e enquanto não acordar não poderei dizer o que é ilusão e o que é real. E sem saber separá-los não poderei optar, e misturá-los a meu gosto. Porque os sonhos alimentam a vida, mas o que é dos sonhos sem vida?