segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Sono longo

 Acordei e ainda era noite. O peso das cobertas não trazia conforto suficiente para contrabalancear o medo persistente do pesadelo. Essas memória se dissipam com certa rapidez. Logo não sei exatamente qual era o enredo que me provocou tamanho espanto. No entanto, o susto permanece. O corpo inteiro comunica o pavor do que vivenciou minutos atrás. A sensação não passa. É necessário mudar a posição, virar para o outro lado. Como quem troca o canal, busca uma nova programação, um novo espaço, uma nova memória.

Essas histórias poderiam ficar bem gravadas na minha memória. Não ficam, creio que, em partes, por uma opção de esquecer o pavor da noite. Mas ainda é noite. Uma noite longa que dura muito mais do que deveria. Em alguns momentos parece que vai amanhecer, quando descubro que era apenas um luz acesa na casa vizinha. Ela logo se apaga, o morador volta para a cama. Todos dormem, menos eu e o cachorro assustado que comunica suas ideias para qualquer pessoa. 

Aquele latido em específico já se tornou um lembrete do terror noturno. Em qualquer lugar, a qualquer hora. Agora já sei e afasto essa ideia. Tenho afastado muitas ideias ultimamente. Talvez seja precisamente por isso que venho aqui contar. Como se estivesse tirando da frente cada caco desses. Para não voltar a pisar em superfícies que machucam sem a necessidade.

Movendo-me assim no escuro, penso que fiquei por muito tempo parada. Acontece que, quando há qualquer lampejo de luz, percebo que já estou muito distante do ponto de partida. Essa imobilidade aparente, a sensação de não estar no marco estabelecido por alguém, são os fatores que provocam o desespero. No entanto, ao perceber que o movimento sempre existiu, mesmo que não seja constante, traz um certo conforto. 

Espero que nos próximos dias possa existir alegria no que foi feito. Independente do que seria ideal. Com base no que é possível e no peso que foi sendo levado junto. Isso porque não é possível despejar toda a bagagem de uma vez. Ainda assim, espero que ela seja cada dia mais fácil de ser carregada.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Pendurados

 O mural estava cheio de papéis afixados. Eles farfalhavam com o vento a cada nova brisa. O dia estava assim, suave. O sol parecia iluminar na medida certa, o tempo estava mais seco, as plantas bem verdes e o riso das crianças entrava pelas janelas. Tudo estava em paz, com exceção dos papéis a se debaterem no mural. 

Decidiu se aproximar, pegou uma pequena folha amarela, arrancou e trouxe mais próxima dos olhos. As letras eram pequenas, muita informação para pouco espaço. O redator da mensagem sabia disso desde o início, pois se ocupou em aproveitar bem o espaço. Tinha pressa, mas tomou cuidado com o que dizia. Era importante que fosse compreendido. Ainda assim, deixou a informação e partiu. Pelo visto, já tinha algum tempo. 

Com quem falava? Talvez ninguém em especial, só precisava deixar a sua mensagem ali, onde as pessoas pudessem ver. Ninguém em específico, todo mundo se possível. Não assinou, não desejava ser lembrado, queria apenas que as suas palavras fossem. Um viajante de pouca bagagem física, mas muitas memórias. Deixou o gato sozinho em casa e precisava retornar logo. 

Os papéis continuaram a chamar por ela, queriam ser lidos, queriam ser levados embora e também queria seguir sendo vistos. Queriam estar ali, mas também com quantas outras pessoas fosse possível. Deixe-me aqui e me leve na sua memória. Guarde a minha mensagem, não a minha presença. No entanto, ela não podia resistir, não era possível lembrar tudo. Pegou algumas daquelas mensagens com gestos rápidos e guardou nos bolsos. Baixou a cabeça e saiu, sem se despedir de ninguém. 

Nos próximos dias, se dedicou a fazer reproduções. Repetiu cada vírgula, compreendeu cada mensagem. Ela também queria que mais pessoas soubessem daquela beleza, daquela grandeza, das inúmeras possibilidades. Tanto repetiu aquelas palavras, que foram se tornando suas também. Foi se fundindo ao papel, foi se misturando à tinta da caneta, foi virando conto, romance e biblioteca. Tanto se misturou, que se espalhou por uma biblioteca inteira. Agora, quem procura por ela, encontra milhares de palavras. Alguns a veem como drama, outros como comédia e há até quem a entenda como uma abraço amigo depois de um dia difícil. 

Ela não se importa com isso, está muito ocupada sendo. Quanto mais pessoas a conhecem, maior ela se torna. Quando ninguém regressa, ainda assim ela está ali. No entanto, por mais tempo que fique sem ser visitada, eventualmente alguém diz: lembra daquela... como se chamava? Aquela que era poesia e se foi com o vento.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

A planilha

 Pediram para que eu me dividisse em células e colunas, acabei me perdendo entre abas. 

Será justo pedir para que alguém se divida assim? Tentei voltar ao fluxo, me organizar em rizoma, deixar o rio fluir por entre as páginas e me negaram a alternativa. Pedi para voltar a ser quem era, mas isso não é possível. Nós vamos nos transformando. 

Peguei uma folha e tentei dizer o que sentia. Fui descobrindo aos poucos que precisava da liberdade de não precisar. A obrigação colocou tantas amarras no caminho que logo tropeçava a cada duas palavras. É necessário pular, voar, desviar. A criação tornou-se tropeços até que pode encontrar o espaço de voo novamente. Acontece que ainda não sei se ela consegui de fato e por completo. 

Por vezes me pergunto que controle eu tenho de fato. As coisas parecem acontecer conforme desejam. Se eu colocar uma coleira e tentar levar para passear, a criatividade senta sobre as patas de trás e me olha com cara de quem manda aqui. Ela é como esse animal parcialmente domesticável. Ela olha para as planilhas e prazos e se recusa a sair para brincar. 

A sua casinha é quente e protegida, ela come o que lhe apetece e às vezes até nos sorri quando menos esperamos. Ela quer calma e tempo, se deita em um canto e assiste enquanto todos se arrumam para sair. Vou me deixando ficar para trás, na expectativa de que ela queira me acompanhar.

Às vezes ela me chama para brincar quando estou sem tempo e tem dias que ela me cutuca e quando olho já não sei aonde foi. A criatividade exige dedicação, tempo e paciência. Ela pede que a gente traga alimento: cultura, passeios e experiências. Se ela fica faminta vai deixando de trabalhar e passa a procurar conforto em outro lugar.

A criatividade gosta do equilíbrio da corda bamba e salta em camas elásticas de pés descalços quando ninguém está olhando. Ela chama pelo seu nome e se você ignora muitas vezes ela deixa de chamar. Depois disso, é necessário fazer uma limpeza nas ideias que entupiram a passagem, até poder reencontrar o seu fluxo.