domingo, 12 de dezembro de 2010

Voltou a respirar, depois de muito tempo presa na escuridão de um lugar ainda desconhecido ela pode ver um pouco de sol. Mas sabe que seus pés continuam acorrentados. As mãos livres permitem que faça algumas anotações importantes, e depois ela volta a ler. Lê para saber o que se passa consigo, ou o que se passou. Não sabe tanta coisa. Debruçou na janela e viu o movimento na calçada. Inclinou sempre mais, quando seus pés mal tocavam o chão, deixou-se cair e observou o teto estrelado por muito tempo. Pensou nas estrelinhas de plástico tão próximas e tão fora do alcance de suas mãos. Esticou mais os dedos, cogitou levantar-se, mas não podia mais. Precisaria ficar na mesma posição por muito tempo ainda, sentindo cada músculo, cada ligamento, cada novo pensamento. Mastigou suas ideias lentamente, saboreou, deglutiu, digeriu e vomitou. Vomitou cada uma de suas ideias lentamente, viu-as escorrer com carinho, arregalou os olhos para os espectadores. Sentiu suas pupilas mudarem de tamanho, a passagem do ar se estreitar, sentiu o peso sufocante em seu peito, sentiu o que não podia mais sentir. Pensou em partir para bem longe, agarrar-se ao rabo da primeira estrela cadente que passasse e ir para aonde ela a levasse. Pensou em berrar até que seu ar acabasse. Pensou em deixar de ser, pensou em nunca mais pensar, pensou tanto que pensou que fosse explodir.
Algo dentro dela explodiu e se espalhou por muitas partes. Ainda hoje ela se debruça o quanto consegue na janela procurando seus pedaços. Ela sempre volta a olhar com atenção em busca de suas partes. E ainda há momentos em que ela se pergunta se realmente quer encontrar. Às vezes ela pensa que deve mesmo ficar assim espalhada. Ela debruçou mais, até que seus pés não tocassem mais o chão. Sentindo o vento em seu rosto, ela abriu os braços e sentiu o frescor do oceano. Deixou que suas gotas escorressem e se misturassem ao mar. Os dois agora não se diferenciavam mais, e quem poderia separa-los? Sentiu-se tranquila por saber que a qualquer momento poderia escolher qualquer daquelas gotas e chamar de sua. Sentiu-se confortável por saber que poderia reencontra-las no lugar que lhe fosse mais conveniente. Sorriu e engoliu algumas verdades trazidas com o vento. Suspirou. Sentiu os cabelos alisarem sua face. Apertou os olhos com força, esqueceu que ainda precisava continuar.
Continuou escrevendo compulsivamente. Seu braço arde, fazia dias que escrevia, e se as folhas acabassem, se a tinta da caneta falhasse. Talvez isso fizesse com que ela parasse, talvez fosse um tormento. O vento soprou pela janela, levantou as cortinas e bagunçou suas anotações. Ela rolou pelo chão, viu os reflexos da cidade. Segurou na janela e levantou. Suas mãos escorregaram pela parede. Viu a bola de fogo surgir longe, fechou os olhos com força, tudo ardia. Sentiu o calor da luz sobre sua pele. Debruçou na janela, ficou completamente curvada para o lado de fora, sentiu a parede fria. Deixou escorrer tudo o que havia em si. Até deixar de ter. Virou clandestina moribunda, completamente destituída de suas posses, completamente vazia de outros seres. Buscou-se dentro da sua carcaça. Viu seu reflexo em uma poça de lama, sentiu seus dedos em um caco de vidro. Calou para sempre.
Sempre calada. Nas ruas ninguém sabia que era sua a voz que falava quando fechavam os olhos. Ela falava com uma parte sua que ia direto a uma parte deles e que era invisível aos olhos viciados. Excesso de luz, excesso de som, de cheiros, de vidas, de idas, de desejos, excesso de excessos. E em meio a tantos excedentes ela era apenas um detalhe desnecessário. Lhe telefonavam quando não havia coisa melhor a fazer. Pediam-lhe ajuda quando embotados. Descarregavam sobre ela sues restos. E ao fim de cada dia ela tinha um novo apanhado de informações. Por isso demorava para dormir, tantas vidas para organizar depois da sua. Ela debruçou na janela e os observou. De tanto olhar acabou se misturando. A ponta de seus pés descolaram do chão, até estar ela toda colada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário