sábado, 25 de setembro de 2010

A janela despencou do décimo primeiro andar. Caiu lenta até atingir o solo confortavelmente. Deixou passar alguns transeuntes desligados, se fez indiferente para outros apressados. Talvez tenha perdido suas botas durante a queda, talvez tenha perdido no impacto. Quis chorar mas preferiu novas aventuras. Desventuras insignificantes, grandes impactos. Como quis ser pedra. Aceitou tudo resignada, virou de costas e caiu lentamente, enquanto pensava no que havia passado. Não pensou no que estava por vir, fez alguns planos para os anos seguintes. Lixou as unhas enquanto estava no ar, rodopiou. Não pediu mais que lhe devolvessem o que era seu. Pensou que certamente nem queria mais o que supostamente teve. Decidiu que todo o vazio era seu, decretou que as posses passassem a ser todas dos imbecis.

Afinal de contas, eles precisavam dizer meu, não ela, não mais. Abriu os braços, assim ficaria mais confortável. Sentiu-se feliz por deitar finalmente. Nem percebeu os olhares perplexos das pessoas olhando seus cacos espalhados. Achou belo, gostou dos reflexos produzidos, brilhou com eles. Alguns se apavoraram, outros quiseram compreender. Mas ninguém poderia de fato. Nenhuma das ações pretendidas era para ajuda-la, mas para deleite próprio. O prazer de descobrir o que se passa com o outro. Ela continuou deitada.

Quando ficou suficientemente cansada, levantou. Levantou e pensou em voltar pelo mesmo caminho que veio, mas preferiu não pegar o atalho da esquerda. Ignorou as opiniões, fechou os olhos quando o sol a cegou. Repentinamente percebeu que a visão nunca lhe fez falta, e fechou os olhos para sempre. Fechou também a boca e ficou surda. Não sentiu mais, rumou folha ao vento. Veneno risonho andou por veias estranhas.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O silencioso murmúrio de uma velha cansada vazou pela janela de madeira semi apodrecida. Sua voz já cansada pelos anos de uso pareceu firme de repente. Por uns instantes sentimos um tom de maldade, mas antes de julga-la pudemos perceber o que era. Não foi só o tempo que passou para aquela mulher, as pessoas passaram. O tempo puxou o tapete algumas vezes, ela se deixou escorregar por caminhos tortuosos. E ao olhar para trás pensou que talvez não fosse possível chegar ali sem eles. Olhou para seus pés inchados, sentiu-se tonta, talvez pelo cheiro de incenso que subia da janela vizinha, talvez fosse o acumulo de anos bebidos. Lembrou-se dos dentes cansados que a abandonaram, e da gengiva que já lhe dava mais problemas do que ajudas.

Apoiou a mão no peitoril da janela e olhou lentamente para fora, por entre as frestas de madeira viu que ainda era dia. Abriu a janela com um leve empurrar. Suas agilidade e força também se foram. Ao ver as pombas, que pousaram para pedir mais uma vez suas migalhas, a velha sorriu. Aquelas eram suas visitantes mais fiéis, talvez as únicas que se lembrassem dela todos os dias. Levantou-se com dificuldade, buscou apoio no balcão, esforçou-se para pegar o banquete separado cuidadosamente em um saco plástico. Voltou para a janela, caiu.

As pombas voaram solenes, chegaram perto da velha, roubaram o seu pacote. Ela sorriu, meio de lado, mais uma vez. Deu mais um suspiro de desaprovação ao cachorro da vizinha que latia para suas amigas. Rodopiou pela primeira vez em anos, cantou como nunca antes fora capaz. Encantou-se com o que pode ver de tão alto, fez alguns mergulhos e por fim, deitou sobre o grande algodão que anunciava seu nome em letras luminosas. Sentindo-se confortável como há muito não sentia, dormiu enquanto ouvia a distante melodia dos homens trajando branco.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

No alto daquele morro, tão alto que não se via nada além do céu, estava sentada aquela moça, envolta por suas vestes brancas. Longos fios ondulavam com o vento, serpenteando com calma doçura. Nos aproximamos e pudemos ver seus olhos fechados, nenhum dos músculos que pudéssemos ver se moviam, e duvidamos que algum outro pudesse ainda viver, não fosse o leve movimento em seu peito. Mãos sobre os joelhos, a moça esqueceu seu passado, esqueceu também seu futuro e seu presente. Esqueceu quem era e quem poderia ser, esqueceu quem foi você e quem sou eu. Esvaziou-se a moça, tudo nela se calou.

Todos os dias ela retornou ao mesmo ponto. Não imaginamos a tempestade que se armava sob o céu sereno. Não suspeitamos que a calma construída teve que perdoar o imperdoável, e amar o repugnante. Não imaginamos que seus passos lentos não eram por calma, mas por medo de chegar. Não quisemos ver que seu último refúgio não era apenas o alto da montanha, mas também a beira do precipício. Não suspeitamos da dor que fez aquela moça acordar nos últimos dias, nem quisemos saber da solidão que a fez adormecer. Preferimos ficar com a imagem plácida que tivemos de dentro dos nossos casulos. Preferimos receber sua bênção todos os dias, como se ela não precisasse de ar.

Então um dia o Sol raiou e a moça não estava mais lá, não havia sinal algum da sua passagem, não ouvimos seu nome ou seu sussurro. Ninguém comentou o que viu, ninguém ousou levantar o olhar. Mas parece que todos sentiram o mesmo aperto, e foram todos igualmente fracos para perguntar o que havia acontecido. Fomos todos suficientemente egoístas para pensarmos na falta que sentimos, mas nenhum de nós pode pensar no pavor que levou a moça.
Não foi por opção que despenquei do penhasco, não foi por querer que segurei em você. Pode soltar agora, bater as próprias asas não é tão assustador assim. Aquele antigo vaso de porcelana quebrou, e agora por mais que chore diante dos cacos as cicatrizes nunca sumirão.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Depois de ver aquele rio escorrer, restou apenas o ir e vir de uma folha sem ar.