domingo, 28 de março de 2010

Hoje acordei muito cansada... não sei que horas dormi nem quando acordei, perdi meus papeis de anotações, com eles minhas memórias. Agora como poderei dizer ao certo quem sou? Preciso de um papel e uma caneta, é urgente, ou esquecerei o pouco que posso lembrar agora, então será o fim. Foi aquela pata de um animal grande, talvez um urso, que arrancou brutalmente aquela imagem cinza, enquanto olhava para as minhas recordações em pequenos pedaços de papel, quem sabe fotografias antigas. Um filme antigo, uma imagem oscilante, e aquela menina de saia escura e blusa clara, cabelos presos, sentada nos degraus da varanda de uma pequena casa de madeira. Os copos de leite contavam histórias, de lugares ainda desconhecidos, nem a chuva forte os calou, os trovões causaram sobressaltos, mas não o abandono. O problema é aquela pata mesmo, uma fera qualquer, que invade vidas alheias, memórias alheias, rouba? Talvez essa seja uma palavra forte demais, não sei ao certo, eu diria que arranca, sim, foi isso que aconteceu, uma fera arrancou, qualquer coisa muito especial. Era uma fera de pelos escuros, aparência meiga, mas garras muito afiadas. E nós já sabíamos que as aparências enganam, e como enganam. Precisamos estar atentos para o que há além delas, e eu estive, estive atenta esse tempo todo. A menina na varanda estava atenta também?

Não, todos nós nos distraímos. Ela, você e eu, deixamos o caminho aberto para as feras todas, e as feras não têm esse respeito aí pelo nosso espaço. E aquele filme foi arrancado da parede escura, com uma patada rápida, e hoje eu acordei sem memórias. Acordei com minha cabeça ainda envolta nos sonhos que não lembro, meus braços ainda pesando pelo cansaço da luta, talvez. E alguns dizem que é então hora de descansar... O que é o descanso para os que têm a mente inquieta? Essa noite lutei contra uma fera e ela venceu. Venceu?

A tal fera saiu cantando vitória, e eu descobri que dois vencem ao mesmo tempo. Não sabemos o que queremos de fato, isso é certo. Não sabemos o que é o desejo de nossas almas, pedimos por coisas, e quando temos, descobrimos que estávamos errados. A fera saiu cantando vitória, não porque ganhou o que queria, mas porque arrancou o que outro queria, ou recuperou o que nunca teve. O que a fera não sabia, é que não sabia nem de si. E a fera saiu cantando vitória.

Eu em silêncio, para que ninguém percebesse, me alegrei também, pedi que abençoassem a tal fera, ela não sabia o que levava consigo. Hoje acordei sem lembranças. Uma fera levou minhas memórias, mas ela não sabe como encontra-las. Elas se escondem umas dentro das outras e só eu decifro, só você sabe. A fera cantou vitória, e hoje eu acordei sem lembranças. A fera cantou vitória, e eu chorei em silêncio. A fera cantou vitória, as memórias se deixaram levar, eu chorei baixinho e sorri ao ver tudo que a fera não sabe.

Lembrei do dia em que encarei a verdade no alto do morro. Hoje acordei sem memória, mas encontrei a verdade no caminho, ainda não decifrei, mas não fiquei só. Empurrei uma pedra lá do alto, e ela rolou pela grama verde, caiu no rio e flutuou. A tal pedra voando pelos céus buscou minhas lembranças e não encontrou. Essa noite uma fera arrancou minhas lembranças, hoje acordei ao lado da verdade. Sentada num banco, de chapéu amarelo, sapatos vermelhos, vestido preto, gola alta, broche. O cachecol voando com o vento, as nuvens correndo rápidas, minhas memórias.

Berrei tão alto quanto pude, sentada sobre as mãos, banco redondo. Eco, ecoou, vôo. As palavras giraram ao meu redor, subiram, desceram, cantarolaram, tocaram flautas, passarinhos. Essa noite uma fera levou minhas dores. Hoje acordei triste. Essa noite uma fera levou minhas memórias, hoje acordei dançando. Joguei o banco da colina, meu chapéu correu pela grama verde, me jogou da janela, meu vestido pintou estrelas, meus sapatos fizeram ninhos nas sacadas. Essa noite uma fera levou meus sapatos vermelhos, hoje acordei de pantufas.

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