segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Depois de tanta tempestade sentou diante da tela vazia. Parecia estar vendo seu próprio reflexo. O rosto inchado, os olhos vermelhos até as bochechas, sua face escorrida, as pálpebras pesadas, areia nos olhos, os brilhos das gotas presas nos cílios contornando a visão. Pelo menos brilhava. Fazia lembrar da bolinha de vidro, era como se tivesse várias no olhar. O ar morno da rua entra pela janela semiaberta, o gosto de ranho desce pela garganta, a língua pegajosa parece não querer desgrudar, e assim não se pode falar. O choro escorre pelos dentes e vai sempre acabar no estômago, ele pede para ser digerido. Mas é dos alimentos que mais demoram para digerir, é pesado, cheio de sabores que se revelam durante o dia. E a noite parece que eles mudam de forma, eles aumentam, eles tomam conta. Mas ao anoitecer pouco importa, já basta a luz do sol indo se deitar, essa luz semiqualquercoisa, que fala de um estado de deixar de ser e ainda não ser, que fala da passagem do dia para a noite, que vai amortecendo os sentidos, que vai potencializando os amores, que enfia o dedo nas feridas. Ao entardecer pouco importa, a luz já basta, a luz do dia que parte já é suficiente para potencializar as melancolias, para elevar qualquer dor. Nem faz diferença para onde se vai nesse horário, ele escoa por conta própria, escorre por entre os dedos que tentam capta-lo. E ele é tão rápido quanto interminável. Ele é praticamente sempre silêncio e se não for silêncio não se vê. E nesse horário o gosto nos lábios são cores. Se as core murcham resta o ar que respiro nesse horário, e fica indefinido por horas.

Nessa hora também os seres alados começam a sair da toca, voam e tomam conta do espaço. Escondem-se entre as gramas, rondam os corpos, sugam os sangues, iluminam entre as árvores. Nesse horário muitos seres saem das tocas, os povos noturnos vão para seus rituais estranhos, usar roupas desconfortáveis e ouvir sons altos. As pessoas sentam ao ar livre para beber coisas que não gostam e falar com pessoas com quem não se importam. Nesse horário uns se desconectam e outros se conectam. Faíscas são faíscas e os ninhos são mais quentes. O anoitecer anoitece de tantas formas diversas no mesmo dia. No dia seguinte ele nunca é o mesmo do anterior, e no decorrer dos anos ele é sempre novo. Nós nos repetimos, e não importa por quantos anos, sempre anoitecemos diferente. E isso me alegra, pois sei que amanhã não anoitecerei como anoiteço hoje. Embora sempre exista algum anoitecer que poderia ser eterno, ele já passou, mas certamente haverá algum semelhante em sentido.

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